OS ABUSOS COMETIDOS NA INTERNET E A LEI BRASILEIRA
Por Humberto Espinola
Advogado, Professor de Direito Penal e ex-Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Fotos: Luis Xavier de França / Gulyas Comunicação
Com a formação de uma rede mundial de computadores, comumente denominada Internet, houve a criação e o desenvolvimento do chamado Universo Virtual, com características existenciais próprias e específicas e cuja energia principal é a informação. A Internet é a maior expressão do mundo globalizado, conectando instantaneamente pessoas de todo o mundo, que “navegam” e se comunicam em torno de informes de todos o tipos que circulam em seus respectivos computadores. Ademais, as características desse universo digital, principalmente a instantaneidade das interações, favorecem a liberdade de atuação e de expressão desses “navegadores”, bem próxima da anarquia, em seu sentido nobre. Essa liberdade de expressão é a sua essência, a sua tônica e o segredo e a razão principal de seu extraordinário desenvolvimento e de seu papel revolucionário nas relações humanas.
À medida que a tecnologia informática se desenvolve e se aperfeiçoa, esse Universo Virtual se expande em todo o planeta, alcançando cada vez mais adeptos e formas de utilização, com a criação de redes, sites ou blogs congregando os mais diversos assuntos e produzindo notícias, comentários e opiniões dos seus internautas. A noção de privacidade foi alterada com o advento da Internet, e muitas vezes são os próprios indivíduos usuários que aceitam a exposição e mesmo fornecem fotos, áudios, vídeos e expõem os seus dados pessoais ao se integrarem a redes sociais ou ao adquirirem produtos por transações online.
A expansão desse universo informático – favorecida pela facilidade de atuação e por uma liberdade de expressão nunca antes imaginada – produz diariamente informações e dados acessíveis a todos os usuários, desencadeando a democratização dessas informações.
Porém, se esse fluxo universal e aberto de informações é capaz de proporcionar resultados benéficos, educativos e de utilidade para a vida das pessoas e para a humanidade, também pode trazer consigo abusos de diversas formas: um enorme “lixo eletrônico/virtual” composto de mentiras, falsidades, equívocos (e mesmo “desinformações”), notícias e comentários cretinos, destituídos de qualquer interesse ou importância prática. Muitos desses abusos atingem, expõem e prejudicam coletividades e pessoas, e uma parte deles se constitui de práticas criminosas, exigindo medidas de prevenção e repressão constantes.
Essas práticas abusivas proporcionam uma guerra mundial diária e por enquanto sem fim: de um lado, temos indivíduos que – isoladamente ou organizados em quadrilhas, agindo no anonimato ou sob falsa identidade – buscam realizar atividades abusivas e até mesmo criminosas; e do outro lado estão estruturas e agentes de serviços com a função de identificar, prevenir ou reprimir esses abusos, inclusive com inovações tecnológicas. Talvez no futuro, com o advento de novos recursos tecnológicos, se consiga um maior controle dessas práticas abusivas e dessa criminalidade.
Em relação à prática de crimes em torno das atividades de informática, surgiu a denominação de “delitos eletrônicos” ou cibercrimes para identifica-los e distingui-los, empregada em vários países do mundo. Para esses delitos, há que se considerar duas vertentes principais. Assim, temos os crimes já existentes que são praticados por meio da Internet. São ações delituosas, já tipificadas como crimes – fraudes, danos, calúnias, difamações, pedofilia, falsidades dos diversos tipos, racismo, xenofobia e outras discriminações, etc. – mas que se utilizam das vantagens que encontram no meio virtual para se consumarem. A outra vertente se compõe dos cibercrimes propriamente ditos, pois o seu aparecimento só se tornou possível com o uso da informática e com o desenvolvimento da Internet, como é o caso da obtenção ou uso de informações privilegiadas pelo acesso não permitido a computadores; a difusão de informações falsas; a realização de vandalismo ou de ato de terrorismo pela invasão de computadores ou ocupação de redes virtuais; as diversas formas de “estelionato eletrônico”, etc.
A repressão a tais delitos, no entanto, conhece significativos obstáculos, a começar pela necessidade de localização e identificação de seus autores e partícipes, agravada pelas situações em que essas práticas delituosas são transnacionais, partindo de um país, ou de outros países, e dificultando ou mesmo impossibilitando as medidas repressivas consequentes no país onde ocorrem.
Um fato recentemente divulgado na mídia brasileira demonstra essas dificuldades: um site denominado www.nomesbrasil.com disponibiliza para pesquisa os dados de milhares de cidadãos brasileiros, inclusive o número do cpf, bastando “clicar” o nome do interessado a ser pesquisado. Ora, em princípio esse fato por si só não constitui crime, mas seria o caso de se averiguar como esses dados foram obtidos, porque podem ter sido colhidos ilegalmente, e aí o fato passa a configurar crime. Mas mesmo não sendo crime, é um abuso, e outras medidas podem ser tomadas. Ocorre que o site mencionado está “hospedado” em um servidor internacional, denominado “GODADDY”, que tem sede no Estado do Arizona, Estados Unidos da América. E como essa “hospedagem” deve ser paga e fruto de um contrato, o “GODADDY” não fornece a sua localização, ou a identificação de seus responsáveis, a não ser que seja obrigado pela Corte judicial do Estado do Arizona.
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Diante desses óbices apontados, e de muitos outros, uma certeza se impõe : as ações de combate a esses crimes não devem se limitar às que são realizadas por cada país em seu respectivo território, isoladamente, e há um grande espaço para a ação conjunta transnacional, com muita cooperação entre os diversos Estados envolvidos.
Evidenciado o reconhecimento de tal necessidade, até agora são poucas as iniciativas no sentido de estabelecer parâmetros para uma cooperação transnacional de repressão dos abusos cibernéticos, sendo a mais notável a Convenção sobre o Cibercrime, realizada em 2001 na cidade de Budapeste sob os auspícios do Conselho da Europa, que teve a adesão dos países europeus. Ao longo dos anos essa convenção passou a ter a adesão de outros países de fora do continente europeu, como os Estados Unidos, sendo alguns da América do Sul (Argentina, Chile, Peru, etc.).
O Brasil, um dos maiores centros de usuários de informática do planeta, vive essa guerra cotidiana, com milhares de abusos denunciados a cada ano. O “Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil/ CERT.br, mantido pelo “Comitê Gestor da Internet no Brasil/NIC-Br” divulga em seu site as estatísticas de que houve mais de quatrocentos e sessenta mil registros de problemas com ataques a computadores somente no ano de 2012 e que em 2014 esse número subiu para mais de um milhão ( www.cert.br ) ! Essa situação preocupante reclama a adoção constante de medidas preventivas e repressoras desses abusos, sendo de grande e fundamental importância a instituição de leis regulamentadoras dessas atividades no território brasileiro, capazes de satisfazer, ao mesmo tempo, a liberdade de atuação e a proteção da privacidade dos usuários, como também proporcionar o necessário enquadramento das situações abusivas e penalizar os seus responsáveis.
Apesar de não ter aderido à Convenção de Budapeste até o presente momento, o Brasil tomou algumas iniciativas adotadas nesse evento, com a inserção de algumas tipificações de cibercrimes em alguns diplomas legais, como a Lei 8.069, de 1990/Estatuto da Criança e do Adolescente, onde foram acrescentados os artigos 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 244-B, contemplando algumas situações de pedofilia e de corrupção de menores, e a Lei 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação. Além dessas previsões pontuais, alterações no Código Penal proporcionaram a introdução de novos tipos de cibercrimes, sobretudo com o advento da Lei 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dentre esses novos crimes, cabe citar:
– Divulgação sem justa causa de informações sigilosas ou reservadas contidas ou não em um sistema de informações ou banco de dados da Administração Pública”, artigo 153, parágrafo 1-A;
– Invasão de dispositivo informático alheio com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização do titular, ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita, artigo 154-A, parágrafos 1˚ a 5˚;
– Interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública, artigo 266, parágrafo 1˚;
– Falsificação de cartão de crédito e de débito, artigo 298, parágrafo único;
– Inserção de dados falsos em sistema de informações por funcionário público, artigo 313-A;
– Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações da administração pública feita por funcionário público, artigo 313-B;
– Violação do sigilo funcional ao sistema de dados da administração pública por acesso indevido de funcionário público, artigo 325, parágrafo 1˚, I.
Importa destacar que todos esses crimes são dolosos, e o enquadramento de cada deles exige que o agente que o pratica, ou dele participe, tenha a vontade de realiza-lo ou participar dessa realização. Por sua vez, a maioria dessas novas infrações penais, certamente por atentarem contra a privacidade e o foro íntimo, exige da vítima a iniciativa de representação junto a Polícia ou o Ministério Público para que haja a sua apuração. As exceções de iniciativa pública ficam por conta dos delitos que atingem a administração pública direta e empresas concessionárias, ou qualquer dos poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
É de se assinalar, ainda, que o enquadramento de determinados fatos em determinados crimes encontra dificuldades, ou mesmo impossibilidades, proporcionadas pelas mudanças em alguns conceitos de importância fundamental nas relações virtuais, como é o caso do que à hora atual se considera como privacidade. A propósito – e vale como exemplo – noticiou recentemente o “Correio Braziliense” (1/5/2015) que “as pessoas que costumam postar fotos no Facebook, no Instagram e em outras redes sociais nas quais aparecem em lanchas, hotéis, casas luxuosas ou em viagens podem estar em sendo monitoradas pelo fisco”, seguindo-se de surprendente declaração do próprio Secretário da Receita Federal do Brasil, admitindo candidamente tal monitoramento: “As redes sociais são fontes bastante ricas de informações para a Receita e para a fiscalização aduaneira”. Também recentemente, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão inusitada, reconhecendo que não há qualquer ilegalidade na divulgação via Internet do quantum do salário mensal percebido por servidor público, indeferindo ações interpostas por supostos prejudicados, dentre os quais membros qualificados do Judiciário.
Ademais das citadas disposições de tipificações penais, leis importantes para a atividade informática foram editadas no País, cabendo citar a Lei 9.609, de 1998, a chamada “Lei do Software”, dispondo sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador. Muito recentemente, a Lei 12.965/2014 convalidou “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”, reunindo o chamado “Marco Civil da Internet” As disposições dessa nova lei contemplam medidas de proteção genérica à liberdade de expressão, ao direito à privacidade e à preservação dos dados pessoais dos usuários e dos registros com o uso de computadores, e estabelece medidas regulamentadoras – com algumas obrigações – para a atuação dos administradores de sistemas, provedores e servidores de redes sociais, prevendo as hipóteses de responsabilização dos agentes, de acordo com as suas atividades, pelos abusos que venham a ser cometidos.
É ainda muito cedo para avaliar os efeitos das disposições legais ora comentadas, especialmente os seus reflexos na criminalidade brasileira. Não obstante, considerando a sua repercussão transnacional, certamente persiste a necessidade de uma discussão mundial em torno do tema, especialmente em relação à repressão dos abusos e aos crimes decorrentes do uso cada vez mais crescente da Internet, com a uniformização dessas condutas, intercâmbio de informações e dados e regras para ações de cooperação entre os diversos países.
Essa discussão poderia incluir em sua pauta o maior emprego de sanções administrativas e pecuniárias para responder aos abusos da Internet, como medidas repressivas mais eficazes, menos “policialescas” e mais condizentes com o clima libertário do “Universo Virtual”, limitando os tipos de crimes para as situações de maior gravidade.
Outro caminho plausível é o investimento em educação do usuário, com maior iniciativa nesse sentido por parte dos provedores e servidores e redes sociais, a exemplo do que atualmente faz o já citado “Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil/CERT.br”, mantido pelo “Comitê Gestor da Internet no Brasil/Nic.br”, com a divulgação da “Cartilha de Segurança para Internet”, acessível a todos ( www.cert.br).
Contudo, a tomada de medidas repressivas de vários matizes e a instituição de novas tipificações criminais jamais deverão chegar ao ponto de retirar a condição essencial ao êxito e sobrevivência da Internet : a liberdade de expressão dos seus usuários.
ENTREVISTA AO CORREIO BRAZILIENSE EM 1° DE MAIO DE 2015:
ENTREVISTA AO CORREIO BRAZILIENSE EM 1° DE MAIO DE 2015:
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Clarice Gulyas
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