Doença Falciforme: DF é a 2ª unidade da federação com maior incidência no país e 4ª com maior mortalidade; entenda

postado em: Notícias | 0

Por Bruna Yamaguti, g1 DF

O Distrito Federal é a 2ª unidade da federação com maior incidência de doença falciforme (veja detalhes mais abaixo) a cada 10 mil nascidos vivos de 2014 a 2020, no Brasil. No ranking de maior índice de mortalidade pela doença, a capital federal aparece na 4ª posição. Os dados são de um relatório do Ministério da Saúde.

Apesar dos altos índices, o cenário da saúde pública na capital do país não é acolhedor para os portadores da doença. O coordenador da Associação Brasiliense de Pessoas com Doença Falciforme (Abradfal), Elvis Magalhães, denuncia descaso dos gestores, falta de profissionais capacitados, escassez de medicamentos e estrutura precária.

Em ofício encaminhado à Secretaria de Saúde em janeiro deste ano, Elvis pediu uma reunião para tratar dos problemas. Procurada pelo g1, a pasta não se posicionou até publicação desta reportagem.

Elvis Magalhães explica que pacientes com doença falciforme têm prioridade de atendimento em hospitais, por causa de uma carteirinha, emitida pelo hemocentro, a qual identifica a gravidade dos sintomas e a classificação de risco em urgências (veja imagem abaixo). No entanto, o protocolo de atenção a essas pessoas não tem sido seguido, segundo o coordenador da Abradfal.

A doença

 

A anemia falciforme é caracterizada pela alteração no formato dos glóbulos vermelhos, que ficam com uma forma semelhante a uma foice ou meia lua – daí o nome, “falciforme”.

Essas células lutam para navegar pelos vasos sanguíneos do corpo e ficam presas, levando a bloqueios que interrompem o fluxo de sangue. O risco de ataque cardíaco, acidente vascular cerebral (AVC) e danos nos órgãos é maior em pessoas com doença falciforme. Crises de dores intensas também são queixas comuns entre os pacientes.

Adriana Lima tinha doença falciforme. Em julho de 2022, ela passou mal de madrugada e foi para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), em BrasíliaMesmo com a carteirinha de atendimento preferencial, ela não foi socorrida imediatamente

Ela conta que, depois de horas, passou pela triagem e foi internada em uma ala de enfermaria, quando precisava de um leito na UTI. Quando a família de Adriana conseguiu uma vaga na UTI, já era tarde. Ela morreu aos 36 anos.

“Ela foi piorando, perdeu a consciência, eu tentei avisar que ela não estava bem, que não estava me respondendo, mas a enfermeira disse que ela ‘só estava dormindo’. Conseguimos uma UTI, mas não deu nem para transportar ela, porque já estava debilitada demais”, conta William de Jesus Lima, viúvo de Adriana.

Transplante de medula

Com anemia falciforme, Maria Eduarda recebeu doação de medula óssea do irmão — Foto: Arquivo pessoal

O transplante de medula óssea é uma opção de cura para a doença falciforme. Maria Eduarda, de 12 anos, foi um dos casos de sucesso do procedimento.

Ela foi diagnosticada com anemia falciforme, uma das formas da doença, por meio do teste do pezinho.

“Começamos a ir todos os meses para o hospital. Ela precisava fazer transfusões de sangue toda semana. Não foi fácil. A gente sabe que para vir a bênção, tem que vir a luta”, conta a mãe de Maria Eduarda, Jaira Lopes.

 

Quem doou a medula foi o irmão da menina, Lucas Guilherme, de 12 anos. O transplante ocorreu sob os cuidados da médica onco-hematologista Simone Franco, do Hospital Brasília.

“O tratamento curativo é o transplante mesmo. Mas mesmo pra se realizar o transplante, há critérios. Pacientes poucos sintomáticos não vão ter indicação de transplante”, explica a médica.

“A gente como mãe fica muito apreensiva, tinha medo dela não sobreviver. Para mim é um alívio e tanto, é uma doença que a gente não tem conhecimento. Minha filha se curou, mas quantos não têm chance de se curar?”, diz Jaira.

 

Preconceito

 

O coordenador da Abradfal explica que, além da precarização do atendimento na saúde pública, pessoas com a doença falciforme enfrentam estigma por parte da sociedade. Isso se deve, de acordo com ele, à falta de informação quanto à doença.

“Parte dos pacientes sente uma dor tão intensa, que analgésicos tradicionais não são suficientes. Então muitos procuram o hospital para aplicar morfina, mas acabam sendo taxados de ‘viciados’ pelos médicos”, diz Elvis.

 

Ele pontua ainda que, por trás do descaso, pode haver, também, racismo. Segundo estudo do Ministério da Saúde, a porcentagem de óbitos pela doença falciforme no país é maior em pessoas pretas (27%) e pardas (53%); pessoas brancas somam 16%.

A doença é predominante entre indivíduos negros: no Brasil, cerca de 8% da população negra foi diagnosticada com a enfermidade.

“Temos certeza que a doença foi colocada em 2º plano nas políticas de atenção. Isso nos entristece muito, porque a gente vê que doenças genéticas prevalentes em pessoas brancas têm muito mais atenção. Se isso não é preconceito, eu não sei o que é”, diz o coordenador da Associação.

 

‘Quando procuramos uma unidade de saúde, é porque a dor já está insuportável’

 

Para Carolina Garcez, de 28 anos, a luta contra a doença falciforme tem se alternado entre um sufoco e outro. Ela conta que o acompanhamento no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN) tem sido satisfatório. No entanto, quando precisa ser atendida em emergências, passa por momentos de agonia.

“Muitas vezes, quando a gente chega na emergência, e isso é uma coisa que já aconteceu comigo em outras ocasiões, é que o profissional que está lá duvida da nossa dor, questiona se está doendo mesmo”, diz Carolina.

 

Segundo ela, a maioria dos profissionais não segue nenhum protocolo, sendo que a doença falciforme tem um protocolo a ser seguido. “Quando a gente procura a unidade de saúde, é porque a dor já está chegando ao nível do insuportável”, conta Carolina.

A jovem relata ainda que, mais de uma vez, ao chegar em UPAs ou UBSs, foi “mandada” para hospitais de referência. No entanto, com dor, a locomoção fica difícil.

“A nossa intenção é que a dor seja solucionada na primeira ida. Que a gente não precise ficar retornando e repetindo a mesma coisa e dizendo a mesma coisa. Chega a virar um mantra, entende? Do tanto que a gente fala, do tanto que a gente repete”, desabafa.

 

Segundo Elvis Magalhães, coordenador da Abradfal, apesar da alta incidência, a doença sofre com a invisibilidade. “A gente avançou, com muita luta, para trazer mais qualidade de vida para os pacientes, mas vemos que eles têm dificuldade de ser atendidos”, afirma.

“Alguns médicos e enfermeiros desacreditam da dor das pessoas. […] Esses pacientes só vão para o hospital depois que já tentaram de tudo para amenizar a dor em casa. O que eles esperam é que chegando ao hospital, sejam acolhidos e compreendidos na sua dor”, diz Elvis.